AS BASES DO NOVO CORONELISMO ELETRÔNICO CONCESSÕES DE RÁDIO E TV


CONCESSÕES DE RÁDIO E TV
AS BASES DO NOVO CORONELISMO ELETRÔNICO

Venício A. de Lima

Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e
Política (NEMP) da Universidade de Brasília (* )
A seguir, publicamos dois artigos do mesmo autor. Muito embora eles já tenham sido publicados separadamente no Observatório da Imprensa, há uma unidade temática que justifi ca sua publicação conjunta: em ambos, são tratados aspectos das concessões de rádio e televisão.
Outorgar e renovar concessões de rádio e televisão era um poder exclusivo do Executivo até 1988. Uma das inovações da nova Constituição foi exatamente estender esse poder ao Congresso Nacional, nos termos do Parágrafo 1º do Artigo 223. Tendo em vista que as concessões tinham uma longa história de servir como “moeda de troca” do Poder Executivo no jogo político, o fato de deputados e senadores terem de referendar as outorgas e as renovações foi considerado um importante avanço no sentido da democratização das comunicações no Brasil.
Por outro lado, a nova prerrogativa conferiu diretamente a deputados e senadores uma parcela importante de poder num campo de seu interesse direto: o controle das instituições de mídia, que, nas sociedades contemporâneas, têm a capacidade de defi - nir o que é público – vale dizer, de defi nir o espaço de realização da própria política.
A Constituição de 1988, contudo, também proibiu que deputados e senadores mantenham contrato ou exerçam cargos, função ou emprego remunerado em empresas concessionárias de serviço público (letras a. e b. do item I do Artigo 54). Restrição semelhante já existia no Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT, Lei nº 4117/62) desde 1962, determinando que aquele que estiver em gozo de imunidade parlamentar não pode exercer a função de diretor ou gerente de empresa concessionária de rádio ou televisão (Parágrafo único do Artigo 38).
Há, no entanto, indicações de que essas normas legais não têm sido cumpridas e que, na prática, tenha se frustrado o sentimento inicial de avanço democrático. Um número expressivo de deputados e senadores, nas diferentes legislaturas desde 1988, é concessionário e continua a exercer cargos e/ou funções nas suas próprias concessões de rádio e televisão. É o que revela uma pesquisa recém-concluída pelo Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo (Projor).
Mais do que isso: deputados e senadores concessionários de rádio e televisão têm participado ativamente nos trabalhos da Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI), na Câmara dos Deputados, e da Comissão de Educação, no Senado Federal, instâncias decisivas não só na tramitação dos processos de renovação e de homologação das novas concessões, mas também na aprovação de qualquer legislação relativa à radiodifusão.
Neste caso, além da Constituição e do CBT, não são observados o Parágrafo 6º do Artigo 180 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados e o Artigo 306 do Regimento Interno do Senado Federal, cujas redações são semelhantes e determinam que: Uma das mais difíceis tarefas que os estudiosos da radiodifusão encontram é identifi car os verdadeiros controladores das empresas concessionárias de rádio e televisão no Brasil.
Tratando-se de causa própria ou de assunto em que tenha interesse individual, deverá o deputado dar-se por impedido e fazer comunicação nesse sentido à Mesa, sendo seu voto considerado em branco, para efeito de quorum.
Registre-se ainda que a tramitação dos processos tem sido extremamente lenta – há processos que demoram oito anos! – e que, até hoje, não se tem notícia de qualquer pedido de outorga ou renovação que não tenha sido aprovado pelo Congresso Nacional.
ALTERAÇÃO SOCIETÁRIA
A CCTCI da Câmara dos Deputados é a porta de entrada dos processos no Congresso Nacional e, certamente, um ponto de partida adequado para quem busca a compreensão de como funcionam a outorga e a renovação de concessões de rádio e televisão no país.
Uma das mais difíceis tarefas que os estudiosos da radiodifusão encontram é identifi - car os verdadeiros controladores das empresas concessionárias de rádio e televisão no Brasil. Até novembro de 2003, o Ministério das Comunicações sequer disponibilizava para consulta pública o cadastro de concessionários de rádio e televisão. Agora, disponível em arquivo PDF na internet, o cadastro ofi cial é, por razões diversas, uma referência de pesquisa que deve ser utilizada com cautela.
Os verdadeiros controladores das concessões têm recorrido a vários expedientes para proteger sua identidade.
Recentemente, tanto o ex-ministro Eunício Oliveira como o ex-secretário-executivo Paulo Lustosa, do Ministério das Comunicações (MiniCom), tiveram de dar explicações públicas, de vez que, pelo cadastro do MiniCom, ambos seriam concessionários de emissoras de rádio no Ceará, o que contraria frontalmente a lei. Eles informaram que venderam suas concessões há cerca de cinco anos e que a informação ainda não havia sido atualizada no cadastro ofi cial (cf. Elvira Lobato, “Cadastro de Rádio e TV embaraça ministro e secretário-executivo”, Folha de S.Paulo, 3/3/05, página A-11).
Os verdadeiros controladores das concessões têm recorrido a vários expedientes para proteger sua identidade. Nomes de parentes e “laranjas” são recursos comuns não só para esconder o patrimônio como para fugir das normas restritivas aplicáveis a deputados e senadores – e também daquelas que limitam a participação societária de “entidades” de radiodifusão a cinco concessões em VHF em nível nacional e a duas em UHF, em nível regional (Artigo 12 do Decreto 236/67).
Um exemplo recente, com grande repercussão, envolve o deputado federal Roberto Jeff erson (PTB-RJ). Atribui-se a ele o real controle de duas emissoras de rádio no interior fl uminense que, no cadastro ofi cial do MiniCom, aparecem em nome de dois concessionários, sendo que um deles declara sequer ter conhecimento de que é sócio (cf. Nelito Fernandes, “E apareceu um laranja”, Época, edição 368, 6/6/05).
Dessa forma, ao utilizar os dados ofi - ciais do MiniCom, um pesquisador sempre correrá o risco de não estar trabalhando com os nomes dos verdadeiros controladores das concessões de rádio e televisão no país, e portanto, desvelar apenas uma parte da realidade. Uma alternativa seria verifi car nas Juntas Comerciais locais, caso a caso, os nomes dos concessionários das mais de quatro mil emissoras de rádio e televisão existentes no país. Mesmo assim, os nomes dos concessionários não seriam inteiramente confi áveis, pois as Juntas Comerciais são obrigadas por lei a só fazerem alteração societária em seus registros com a devida aprovação do MiniCom. Resta o chamado “jornalismo investigativo”, embora, muitas vezes, se utilize de métodos controvertidos para obter as informações que busca.
MAIORIA FOLGADA
Em 2003, os nomes de dezesseis deputados membros da CCTCI aparecem no cadastro do MiniCom como sócios e/ou diretores de trinta e sete concessionárias – trinta e uma emissoras de rádio e seis de televisão –, incluindo o próprio presidente da Comissão, deputado Corauci Sobrinho (PFL-SP). Seis desses deputados eram do PFL, três do PL, dois do PP, dois do PPS, um do PSL, um do PSDB e um do PTB.
Se considerarmos que a CCTCI de 2003 tinha cinqüenta e um membros titulares e que, portanto, seu quórum mínimo de votação era de vinte e seis deputados, concluiremos que, em tese, os dezesseis deputados concessionários poderiam – em situações de quórum mínimo – constituir a maioria dos votantes, aprovando ou rejeitando qualquer proposição.
Registre-se que, na Câmara dos Deputados, o número de membros das comissões permanentes não é fi xo. Ele é estabelecido por ato da Mesa Diretora no início da primeira e da terceira sessões legislativas de cada legislatura (cf. Artigo 25 do Regimento Interno).
Já em 2004, os nomes de quinze deputados membros da CCTCI – nove deles também membros da CCTCI em 2003 – aparecem no cadastro do MiniCom como sócios e/ou diretores de vinte e seis concessionárias – vinte e três emissoras de rádio e três de televisão. Cinco desses deputados eram do PFL, três do PMDB, três do PL, um do PSDB, um do PPS, um do PP e um do PTB.
A CCTCI tinha apenas trinta e três membros titulares em 2004 e, portanto, um quórum mínimo de votação de dezessete deputados. A bancada de concessionários tinha, portanto, folgada maioria nessas condições e poderia, em tese, aprovar ou rejeitar qualquer proposição em tramitação.
PROPRIEDADE CRUZADA
O cruzamento da relação dos deputados que votaram em pelo menos uma das reuniões da CCTCI, em 2003 e 2004, com a relação de sócios e diretores das novas outorgas e renovações aprovadas mostrou que o deputado Corauci Sobrinho (PFL-SP), então presidente da Comissão, e o deputado Nelson Proença (PPS-RS), membro titular, participaram e votaram favoravelmente nas reuniões em que foram apreciadas e aprovadas as renovações das concessões das emissoras de rádio – Rádio Renascença OM de Ribeirão Preto, SP, e Emissoras Reunidas OM de Alegrete, RS. O mais revelador, todavia, é que os referidos deputados aparecem nos processos que tramitaram na Câmara dos Deputados – eles próprios – como sócios das respectivas emissoras de Ribeirão Preto e Alegrete cujas renovações foram aprovadas.
Este é um forte indício de que a Constituição, o CBT e o Regimento Interno da Câmara dos Deputados estão sendo desrespeitados. Uma das conseqüências dessa prática é, sem dúvida, a perpetuação do velho coronelismo na política brasileira, só que agora travestido de coronelismo eletrônico. Uma grave distorção que se junta a outras tantas – como a propriedade cruzada – e contribui para perpetuar a concentração exacerbada da mídia no Brasil.
MÃO DE GATO NO CONGRESSO
A NOVA DESFAÇATEZ DO CORONELISMO ELETRÔNICO
Nossos representantes no Congresso Nacional não se cansam de nos surpreender. Passou despercebido da grande mídia a apresentação, pelo deputado Alceste Almeida (PMDB-RR), em co-autoria com outros cento e oitenta e nove senhores deputados, da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 453/2005, no plenário da Câmara dos Deputados, no dia 30 de agosto último.
A PEC 453/2005 pretende acrescentar ao Artigo 222 um 6º parágrafo com o seguinte texto:
Não se aplica a este artigo o disposto no artigo 54 da Constituição Federal.
Embora nem o texto da PEC nem a sua Justifi cativa façam qualquer referência explícita à propriedade de empresas jornalísticas ou de radiodifusão, trata-se, na verdade, de permitir que deputados e senadores sejam proprietários de jornais, emissoras de rádio e de televisão.
A Constituição de 1988 [alíneas (a) e (b). do item I do Artigo 54] proibiu que deputados e senadores mantenham contrato ou exerçam cargos, função ou emprego remunerado em empresas concessionárias de serviço público. Essa restrição já existia também no Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT, Lei nº 4117/62), desde 1962, ao determinar que quem goza de imunidade parlamentar não pode exercer a função de diretor ou gerente de empresa concessionária de rádio ou televisão (parágrafo único do Artigo 38)
Pois bem. Como é sabido e notório, vários senhores deputados e senadores – contrariando a norma legal – têm exercido, ao longo dos anos, controle de empresas de radiodifusão, conforme mostrado no artigo “As bases do novo coronelismo eletrônico”.
“CAUSA PRÓPRIA”
Para evitar ilegalidades ou impedimentos, e abandonando de vez qualquer escrúpulo ético, mais de um terço do total dos senhores deputados encontraram agora uma forma de resolver o problema: propor a mudança da própria Constituição. Deputados e senadores passariam a decidir diretamente não só sobre as políticas públicas da radiodifusão, mas sobre as concessões e renovações de concessões dos serviços de radiodifusão, sendo eles próprios concessionários “legais” desse serviço público.
O deputado Alceste Almeida afi rma em sua justifi cativa:
Nosso entendimento Nosso entendimento é que não se faz necessário tal impedimento, visto que todo o processo hoje – não só nesses casos, mas também naqueles em que as atividades de cunho público se apresentam – é totalmente transparente e acessível a qualquer cidadão e as normas que regem ao acesso (sic) impedem qualquer possibilidade de existir algum tipo de dúvida ou privilégio que possibilite àqueles que preencham os requisitos constitucionais necessários para se estabelecerem.
Omite-se deliberadamente a relação cada vez mais direta e decisiva entre o controle da radiodifusão e o controle do processo político, em particular do processo eleitoral. E omite-se vergonhosamente a questão ética envolvida na PEC 453/2005 – aliás, prevista no próprio Regimento Interno da Câmara dos Deputados (parágrafo 6º do Artigo 180), que diz:
Tratando-se de causa própria ou de assunto em que tenha interesse individual, deverá o deputado dar-se por impedido e fazer comunicação nesse sentido à Mesa, sendo seu voto considerado em branco, para efeito de quorum.
OS CO-AUTORES
A análise detalhada dos nomes dos cento e oitenta e nove deputados que subscreveram como co-autores a PEC 453/2005 revela, todavia, algumas situações ainda mais sombrias e indica qual poderá vir a ser o futuro da proposta do nobre deputado Alceste Almeida na Câmara dos Deputados:
1. Trinta e dois desses senhores deputados são hoje membros da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática, ou seja, mais de quarenta e um por cento do total de seus membros titulares e suplentes:
Amauri Gasques Amauri Gasques (PL/SP), Antonio Cruz (PP/MS), Antonio Joaquim (PTB/MA), Arnon Bezerra (PTB/CE), Carlos Nader (PL/RJ), César Bandeira (PFL/ MA), Eduardo Sciarra (PFL/ PR), Enivaldo Ribeiro (PP/PB), Eunício Oliveira (PMDB/CE), Gilberto Nascimento (PMDB/ SP), Henrique Eduardo Alves (PMDB/RN), Hermes Parcianello (PMDB/PR), Inácio Arruda (PCdoB/CE), Inaldo Leitão (PL/PB), Iris Simões (PTB/PR), João Castelo (PSDB/MA), João Mendes de Jesus (sem partido/ RJ), José Santana de Vasconcellos (PL/MG), Leodegar Tiscoski (PP/SC), Leonardo Mattos (PV/ MG), Marcelo Barbieri (PMDB/ SP), Maurício Rabelo (PL/TO), Narcio Rodrigues (PSDB/MG), Nelson Proença (PPS/RS), Pastor Reinaldo (PTB/RS), Pedro Chaves (PMDB/GO), Raimundo Santos (PL/PA), Ricardo Barros (PP/PR), Romel Anizio (PP/ MG), Salvador Zimbaldi (sem partido/SP), Sandes Júnior (PP/ GO) e Vieira Reis (PMDB/RJ).
2. Vinte e seis desses senhores deputados já constam hoje do cadastro do Ministério das Comunicações como concessionários de emissoras de radiodifusão:
Átila Lira (PSDB/PI), Bonifácio de Andrada (PSDB/MG), Bosco Costa (PSDB/Costa (PSDB/SE), Cleonâncio Fonseca (PP/SE), Cleuber Carneiro (PTB/MG), Dilceu Sperafifi co (PP/PR), Francisco Garcia (PP/AM), Gonzaga Patriota (PSB/PE), Henrique Eduardo Alves (PMDB/RN), Humberto Michiles (PL/AM), Jaime Martins (PL/MG), João Magalhães (PMDB/MG), João Mendes de Jesus (sem partido/RJ), Leodegar Tiscoski (PP/SC), Marcondes Gadelha (PTB/PB), Mauro Benevides (PMDB/CE), Moacir Micheletto (PMDB/PR), Mussa Demes (PFL/PI), Nelson Proença (PPS/RS), Oliveira Filho (PL/ PR), Paulo Lima (PMDB/SP), Pedro Fernandes (PTB/MA), Ricardo Barros (PP/PR), Robério Nunes (PFL/BA), Romeu Queiroz (PTB/MG) e Severiano Alves (PDT/BA).
3. Pelo menos cinco desses senhores deputados são hoje, ao mesmo tempo, membros da CCTCI e concessionários de radiodifusão:
Henrique Eduardo Alves (PMDB/ RN), João Mendes de Jesus (sem partido/ RJ), Leodegar Ticoski (PP/SC), Nelson Proença (PPS/RS) e Ricardo Barros (PP/PR).
4. Entre os co-autores da PEC 453/2005, encontram-se parlamentares como o ex-ministro das Comunicações, deputado Eunício Oliveira (PMDBCE); o deputado Ricardo Izar (PTBSP), presidente do Conselho de Ética, e o primeiro vice-presidente da Câmara dos Deputados, deputado José Th omaz Nono (PFL-AL).
VIGILÂNCIA ATIVA
Uma das características de nosso sistema político é exatamente o vínculo já existente entre a grande mídia e importantes elites políticas regionais e locais. As relações entre grupos familiares e empresários da mídia impressa e eletrônica são conhecidas – sobretudo, mas não exclusivamente – no Nordeste do país.
O que resta, então, à sociedade civil e a todos aqueles que ainda nutrem alguma esperança na democratização das comunicações diante da nova ameaça?
Mobilizar os recursos materiais e humanos disponíveis, acompanhar a tramitação da PEC 453/2005 na Câmara dos Deputados e impedir que ela possa prosseguir e venha, algum dia, a se transformar em norma constitucional.
Mais do que nunca, é necessário que os representados fi scalizem a ação de seus representantes no Congresso Nacional. Especialmente na área das comunicações.








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